sexta-feira, 23 de maio de 2014

QUANDO O TEMPO SOBRAVA


Quando, lá fora, caíam valentes zurbadas de água, as mães não nos deixavam pôr o pé na rua. Entreter o tempo era um desafio que preenchíamos o melhor que éramos capazes, que é como quem diz, com barulheira. Assim era, pelo menos, no nosso canto preenchido de três casas (ao tempo destas recordações, ainda a tia Cândida e o tio António não moravam ali).

Alguém se lembrava e gritava: 

Está a chober  e a nebar
a raposa atrás do lar
a fazer os casaquinhos
P'ra amanhã s'casar!

Logo a garotada das outras casas assomava ao espaço que lhe desse acesso à rua e a cantilena era gritada até fartar. A certa altura, mantendo a cadência, variava o rifão, alardeando-se:

Chobe, chobe 
no cu do pobre
Chobisca, chobisca
no cu do Francisca!

Com aquele "chobizca" (assim se pronunciava) esperávamos espantar o mau tempo - não sei se por piedade do pobre e do "Francisca", se por desejos menos altruístas. 

Cansados das lengalengas virávamo-nos para as nomeadas de nossos pais, mas em grupos de duas casas, pois nenhum filho trataria seu pai com menos respeito do que o devido:

- "Fouce! Fouce!Fouce!Fouce!" - Gritavam o Orlando e a Lena, da janela da sala, secundados pelo Tito no alpendre das escadas, enquanto nós, também no alpendre da nossas, nos calávamos.

- "Piloto!Piloto!Piloto!Piloto!" - Gritávamos a Olímpia, eu e o Tito, connosco as duas encostadas à ombreira da porta.

- "Piqueno!Piqueno!Piqueno!Piqueno!" - Berrávamos, depois, os restantes.

Estávamos nisto tempos infindos e não sei como não enrouquecíamos nem como as nossas mães nos aturavam tanta vozearia. Deus lhes pague pela paciência que tiveram connosco.
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O comentador de pseudónimo Rebordainhense ofereceu-nos outra versão da primeira lengalenga e uma outra que eu nunca tinha ouvido. Aqui ficam:


Está a chover e a fazer sol,
As bruxas juantam-se p'ra fazer
pão mole.


Sol na eira 
chuva no quintal
pão douradinho
Nabiças a verdejar
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Sem nada ter a ver com o artigo, mas tendo tudo a ver com o próximo domingo, dia 25, encerro com uma tira cáustica da Mafaldinha da minha adolescência. 


domingo, 18 de maio de 2014

Mês de Maria

Hoje, mais uma vez, dedicámos o dia a Nossa Senhora de Fátima com a celebração da habitual missa que anualmente lhe oferecemos.
O dia 13 calhou este ano a uma terça-feira, motivo pelo qual houve necessidade de adiarmos esta celebração para hoje.
Em abono da verdade, devo dizer que as comemorações começaram ontem à noite com o rezar do Terço e realização da procissão de velas.
Mas ontem, o sr. diácono Mesquita brindou-nos com uma surpresa. Decidiu que a procissão deveria ultrapassar as margens habituais do adro optando por levá-la até ao prado. Com esta opção fez com que Nossa Senhora passasse pela primeira vez (assim o penso) em frente da casa que foi dos meus pais e é hoje pertença dos meus irmãos.
Pelo que a Nossa Senhora de Fátima representa para a gente de Rebordainhos em geral, e para a minha família em particular, e porque me esqueci da máquina fotográfica, deixo apenas estas duas fotografias para que aqueles que estão longe possam também partilhar.



sexta-feira, 16 de maio de 2014

AS NOSSAS PALAVRAS

enxamblar
emxambladeira
enxamblador

As palavras dão voltas engraçadas: elas próprias, no seu desenho, mas também no seu significado. Neste caso falamos em evolução semântica. 

É clarinha como a água a mudança de sentido ocorrida com o adjectivo enxamblador/enxambladeira e com o verbo enxamblar, tão usados quando éramos garotos. Eram palavras de crítica, embora não fossem ofensivas.

Enxambladeira é, para nós, aquela pessoa que, atenta ao pormenor, deixa por fazer aquilo que importa, ou seja, consome o tempo a não fazer coisa que se veja. Enxamblar significa, pois, desperdiçar tempo e trabalho. Normalmente era a voz zangada da mãe que nos admoestava: 

“que estás tu, para aí, a enxamblar?”

Enxamblar vem de "ensemblar" que quer dizer entalhar. O trabalho do entalhador é uma arte de minudência, de concentração obrigatória no pormenor, o que faz com que se não vejam resultados imediatos. Uma peça entalhada é, por consequência, uma obra de arte muito cara.

Em Rebordaínhos não desdenhamos da arte, o que não temos é tempo nem dinheiro para ela e é por isso que apartámos do verbo enxamblar aquilo que o ligava a uma profissão e lhe conferimos aquele tom crítico que o caracteriza.

 As condições de vida determinam, muitas vezes, o valor que damos às palavras. A única dúvida que me resta é a de saber de onde veio o conhecimento da arte de enxamblar à gente da nossa terra.
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Acrescento este lindíssimo parágrafo de um comentador anónimo:

A expressão coloquial “o que andas para aí a enxamblar?!” quer dizer estás para aí com uma tarefa minuciosa e morosa, que não sei o que é e nem para que serve, quando comparada com o trabalho útil e espetacular do cavador que, no meio do campo inculto, ergue a enxada ao ar e, com os músculos retesados, faz descer com força a lâmina metálica que fende a terra para que a semente da sua esperança em boas colheitas encontre um lugar seguro.

Outro anónimo acrescentou, acertadamente, outro significado à nossa palavra:

Enxamblar pode significar também: corrigir, compor, emendar, consertar algo que se tenha feito de errado.
Por exemplo: depois de fazer u que feze, bêo praqui a enxamblar o enxamblador a enxambladeira.

sexta-feira, 9 de maio de 2014

AS NOSSAS PALAVRAS

as lojes

Quase sempre havia duas lojes: a das vacas, por debaixo do palheiro, e a dos porcos, normalmente sob o sobrado da casa de habitação, nesse caso dividindo a área com o baixo.
As lojes eram espaços amplos. Na loje das vacas, a manjedoura de madeira constituía o único equipamento e estava colocada a uma altura que permitia aos animais uma posição confortável enquanto comiam. Às vezes, a burra partilhava a guarida com as vacas, sem melindres de vizinhança. Não era assim, no presépio?
Manjedoura é palavra interessante: da família de “manjar”, que actualmente só usamos como substantivo, foi outrora verbo sinónimo de “comer” (Já não tinham que comer/já não tinham que manjar. Lembram-se da Nau Catrineta?). Enquanto substantivo, manjar significa iguaria, alimento requintado, digno da mesa do rei. Não seria pelos condimentos que a refeição das vacas se assemelhava à dos príncipes, mas o perfume que dela emanava superava-a, certamente. As nossas vacas comiam feno no Inverno, ferranha na Primavera e erva fresca no Verão, ora segada à gadanha e servida na loje, ora pascida directamente no lameiro, vigiadas pelos filhos mais novos da casa. As verdes hastes do milho também serviam de alimento a estes animais. Embora em comedouro separado, a burra alimentava-se do mesmo. Os coanhos, enquanto os houvesse, faziam-na ornear de satisfação.
Um prego espetado na parede, ou numa trave,  servia de embarradouro das focinheiras, noutro prego dependurava-se o lampião que se acendia nas visitas nocturnas e, noutro ainda, os chocalhos que não sei que utilidade tinham, a não ser a de encantarem os ouvidos com a melodia do seu tinir. À ombreira da porta encostava-se a vara de tanger as vacas. Nada mais existia na loje destes animais. O jugo, o carro e demais instrumentos de trabalho bovino, assim como a albarda da burra eram, quase sempre, guardados em lugar à parte.
Na loje dos porcos, em vez da manjedoura existiam duas pias, ou mais,  consoante a dimensão delas e o número de comensais. Uma era feita de um toro escavado e servia de bebedouro; a outra era de cantaria e nela se despejava a bianda, cozida num caldeiro ao lume no Inverno, ou servida crua no tempo mais quente. É da sua função de cozer, aquecendo, que vem o nome ao recipiente (assim como ao nosso caldo a que nunca chamámos sopa): de caldus que significa, exactamente, “quente”.
A bianda era variada: se cozida, fazia-se de castanha mamota; de batatas e das cascas daquelas que as pessoas comiam esbulhadas, de couves de penca ou dos toros das couves galegas desperdiçados das que se cortavam para o humano caldo de coubes; de nabos e de maçãs; de restos das refeições da casa, tudo enriquecido com os farelos de peneirar a farinha para o pão. Se crua, porque fornecida em tempo de renobo abundante, a bianda era constituída por patarrabos cuidadosamente limpos e cortados, abóboras também cortadas, que nós alcunhámos de bóbedas folhas de olmo agilmente ripadas por quem sabia engatar às árvores, tudo isso envolvido nos constantes farelos.
Caso não existisse outro espaço disponível, uma trave da loje dos porcos (ou um pequeno sobrado suspenso) servia de galinheiro, somente para as pitas, perus ou parrecos dormirem, porque durante o dia andavam à solta, ciscando de tudo enquanto a dona lhes não servia os farelos amassados com as porretas das cebolas ou com as couves cortadas colhidas da horta. Às vezes, uma mancheia de grão ou de arroz era tudo quanto bastava para as contentar. No ninho feito a um canto deixava-se o indez, para que nenhuma fêmea fosse pôr os seus ovos noutro lugar. Se a fêmea estava choca, os ovos eram metidos num cesto forrado a palha e levados para a cozinha para que não apanhassem frio. A pita, mãe extremosa, não saía de cima deles e bicava mão estranha que se aproximasse – mesmo que os ovos fossem de perua ou de pata.
Podendo ser, a loje dos coelhos ocupava lugar separado, mas não havendo outro, a sua rede de malha fina era montada na loje dos porcos. Atreitos a maleitas, os coelhos exigiam selecção cuidadosa das ervas que comiam, que deviam estar secas ao ser-lhes servidas. Deliciavam-se com mantrastos e giestas floridas.
Dono que se prezasse acomodava os animais da casa antes de ele próprio e a família se sentarem à mesa da refeição. Dono que se prezasse tinha brio em que as suas vacas ostentassem lombo farto e pele luzidia, sem mancha de bosta.  Dono que se prezasse apenas se servia da vara para orientar a cria, jamais usando o aguilhão que maltratava. Dono que se prezasse passava a noite ao lado da vaca e da porca afrutadas, para as acompanhar no momento da parição. Dono que se prezasse poupava a vaca parida, não a jungindoe evitando o espectáculo lamentável de ver o leite a escorrer das tetas da mãe que bramava angustiada enquanto o vitelinho chorava com fome e saudade. Dono que se prezasse estrumava às vacas e aos porcos, basta e frequentemente, e tirava-lhes regularmente o estrume pois, sendo criaturas de Deus ao seu serviço, era justo que lhes agradecesse cuidando do seu bem-estar. Esta é das lições mais importantes que aprendi de meus pais e da gente de bem de Rebordaínhos.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Esta Páscoa


A nossa terra estava linda, neste Abril de Páscoa. Até os lilases de Maio floriram mais cedo, contribuindo para a alegria dos sentidos embriagados com o perfume de tudo quanto é árvore de fruto e deslumbrados com a mirífica variedade de corolas abertas.

As margens da ribeira dos Pereiros, que os livros dizem chamar-se rio Azibo, estavam coalhadas de flores, mormente das nossas tão estimadas pascoelas. Tufos e tufos delas criavam um tapete contínuo de beleza que, com o murmurar da ribeira, nos convidavam a prosseguir no caminho da sua descoberta. Lameiros verdes, carvalhos ajaezados de líquenes, castanheiros a rebentar, em suma, tudo como o Criador bondosamente ordenou que se passasse. Na perfeição, a paz instala-se na alma. 
Também o passaredo comungava desta abundância e, de entre os ramos das árvores, enchia o ar com os seus gorjeios, ora chamativos, ora receptivos e, embora os não saiba distinguir, deixo-me encantar com a variedade de tanta melodia.
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Na igreja, como é costume, as mulheres afadigaram-se para que tudo concorresse para a alegria da Ressurreição. Deus lhes pague!




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Em casa, estas foram as primeiras flores a entrar:
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Quem quiser ver outras fotografias pode entrar neste álbum de Rebordaínhos