sábado, 29 de maio de 2010

DITOS DO POVO


MAIO

Em Maio queima a velha o talho.

Maio pardo, queima a velha o fardo.

Maio pardo e ventoso faz o ano formoso.

Uma água de Maio e três de Abril valem por mil.

Tantos dias de geada terá Maio, quantos de nevoeiro teve Fevereiro .


Um maio rico de flores e pobre em adágios? Quem se lembra de mais?

sábado, 22 de maio de 2010

AO PASSAR A RIBEIRINHA

Ao passar a ribeirinha,
Onde a água sobe e desce,
Dei a mão ao meu amor
Não quis que ninguém soubesse!

E aqui, aqui, aqui,
Aqui é que eu hei-de estar,
Ao pé do meu amor
Toda a noite a namorar.

Toda a noite a namorar,
Toda a noite a dar paleio,
É um regalo andar
....................................................................Com meu amor ao passeio.

....................................................................Com meu amor ao passeio,
....................................................................Com meu amor passear,
....................................................................E aqui, aqui, aqui,
....................................................................Aqui é que eu hei-de estar.
*

É tão bonito este poema, tão recheado de simbolismo e tão musical devido ao predomínio dos sons vocálicos!

Em alguns poemas há certos pormenores que nos cativam mais. Neste, a rima da primeira quadra enche-me as medidas. Literariamente chama-se rima pobre porque faz rimar duas palavras da mesma classe gramatical – dois verbos, no caso –, mas fazer rimar o presente do Indicativo com o imperfeito do Conjuntivo é de mestre, chamem-lhe lá o que quiserem!

Ao Passar a Ribeirinha é de um lirismo perfeito, embora ingénuo, que se manifesta mais por aquilo que sugere do que por aquilo que diz expressamente. É um discurso directo mas, objectivamente, não sabemos quem fala, se rapaz, se rapariga. Sabemos, no entanto, a quem se refere: a um casal de namorados.

O simbolismo do poema remete para a Idade Média, tempo em que quem cantava sabia o significado exacto daquilo que dizia e, por isso mesmo, não foi por acaso que A Ribeirinha chegou aos nossos dias como um jogo de roda dançado na Páscoa. Na Páscoa, o povo podia folgar porque o calendário litúrgico proibia o trabalho e a nobreza recolhia as armas porque o código da cavalaria assim o impunha. Não havia tempo mais belo e que tanto convidasse aos amores, nisso se igualando os senhores com quem o não era.

Voltemos ao poema. A rapariga (tenho para mim que é a moça quem fala), apesar de ocultar o namoro (“não quis que ninguém soubesse”), mostra-se firme na decisão de amar: “aqui, aqui, aqui, aqui é que eu hei-de estar…”. Ela está na ribeira e, embora não mencione as margens, elas estão subentendidas (“ao passar a ribeirinha”). Os códigos sociais medievais ensinam-nos que a água, podendo simbolizar o feminino, representa também a fecundidade e o rio (a ribeira, no caso) pode ser entendida como uma metáfora para o devir humano. Será um devir incerto porque a água “sobe e desce”, ou será que a rapariga vai disposta a tudo? Ou ainda: a rapariga ia disposta a tudo e tudo aconteceu? Afinal, ela fala no passado (enquanto passava a ribeira deu a mão ao seu amor)! As margens, significando a passagem de um estado para outro, é isso que sugerem, e não será por acaso que tudo se passa à noite ("toda a noite a namorar").

A coreografia do jogo de roda reforça esse entendimento: os pares, depois de uns passos em círculo, abrem a roda. Os da frente desenham arquinhos com os braços e os de trás vão passando por entre eles, tal como os noivos passavam por entre um arquinho florido, colocado à saída da igreja, no dia do casamento. Quem se não lembra de ver?

Curiosamente, a poesia medieval tem uma designação própria para os poemas que falam da manhã – as albas – mas não achou nenhum nome especial para aqueles que aludem à noite, como este nosso, que, sendo nocturno, é intensamente luminoso.
___________
Como o Tonho da tia Lídia deixou claro no comentário, a rima a que me refiro não é uma rima pobre é, antes, rima rara ou preciosa, por ser difícil de alcançar. Obrigada, Tonho (embora só eu me responsabilize pela nova classificação)!

segunda-feira, 17 de maio de 2010

TEMPOS BONS

Estava tão linda a nossa ribeira nesta Páscoa! Já lá não ia desde que, na infância, o bom P.e Caminha se dispunha a acompanhar a garotada em passeios que nos levavam até onde os nossos passos fossem capazes de alcançar. As saudades que tinha!

A caminhada fazia-se ao ritmo do vagar e, enquanto andávamos, carregando o saquitelo da merenda, o P.e Caminha convidava-nos a atentar na dimensão da paisagem, na largueza dos horizontes ou na maravilha das coisas pequenas. Flores e pedras, desenhos da água nas agueiras, o voo das aves ou os seus ninhos, tudo era saborosamente observado e registado no lugar das coisas belas. Aprendíamos, assim, que Deus não era só “majestade”, antes, se revelava próximo e amoroso em cada pormenor que íamos descobrindo. Só os grandes mestres sabem ensinar assim!

Ele não ia com a lição preparada mas sabia como tirar partido de qualquer observação nossa para nos ajudar a ver atentamente, levando-nos a descobrir o que está para além das aparências ou de um exame superficial. Isto passava-se assim nos dias em que nos apetecia aprender, mas havia outros em que, se queríamos cantar e dançar, era isso que fazíamos, certos da sua benevolência. Quantas vezes ficou ele no meio da roda a servir de “farfalhão”?! Entra o farfalhão ao meio, grande data vai levar… Hoje sorrio-me perante o inaudito da situação. Há quarenta anos, no entanto, àquele bom homem não pareceu demérito participar em brincadeiras infantis que os moralistas de hoje considerariam desadequadas à condição de sacerdote. Deus lhe pague pelo desassombro, pela cabeça lavada e pelo coração puro.

Perguntava-nos sempre: Então, hoje, para onde quereis ir? E lá seguíamos à nossa vontade, acompanhados dessa figura de batina e cabeção a quem as nossas mães nos confiavam, agradecidas pelo desvelo. Voz branda, gesto meigo, sorriso terno. Nunca o vi de outro modo, nem o recordo sem ser assim e eram esses os atributos que faziam com que a garotada o seguisse entusiasmada e fruísse do prazer de aprender, sem se dar conta de que o fazia. Seguíamos os caminhos até onde eles levavam, mas também nos embrenhávamos pelas touças se a nossa curiosidade o requeresse. Os passeios com o P.e Caminha serviam, assim, de contrapeso às histórias assustadoras de lobos e feras, escutadas durante os serões das noites compridas de Inverno que nos ensinavam a ter medo da floresta e dos seres que nela habitam.

Um desses passeios foi até à ribeira. Era Verão e o povo consumia o corpo na tarefa árdua das segadas e acarrejas. “Comerás o pão com o suor do teu rosto” foi a citação genesíaca escolhida e explicada como a forma que Deus tem de dizer ao Homem que nada lhe vem sem trabalho e cansaço, quantas vezes com sofrimento. Hoje, sei que foi destas conversas com o P.e Caminha que nasceu em mim a certeza de que a obra divina se completa pela labuta dos Homens. Só espero não estar a ser infiel ao mestre.


Nestes dias, em que os homens da Igreja vivem momentos atribulados, é de justiça lembrar aqueles que foram exemplos de conduta recta e nos ajudaram a ser quem somos.

Muito obrigada, sr. P.e Caminha!

domingo, 16 de maio de 2010

PARA NÃO PERDER O FIO À MEADA

Tenho-me esquecido de dizer, mas o Carlos do tio Arnaldo merece uma satisfação: o fidalgo dos Pereiros chama-se, mesmo, Emílio. As correcções devidas já as tinha feito em Abril (no artigo sobre os Pereiros), mas só agora me lembrei de voltar a falar no assunto. Ao Carlos, o meu muito obrigada pela chamada de atenção.

O Tonho da tia Lídia lançou um repto: quem se lembra dos verso que contam a história da Isabelinha? Ele só se lembra desta estrofe e pede que puxemos pela memória:

Isabelinha porém
morreu-lhe a sua mãe,
ficou juntode uma tia,
que muito mal a tratou
e com um porco a juntou
a dormir de noite e dia.

Eu já perguntei ao meu tio Manuel, mas ele não se recorda. Recordou-se de outras que publicarei dentro de dias, referentes à guerra-civil de Espanha.

sábado, 15 de maio de 2010

INTERVALO

Depois de uma história trágica como a do Severa, proponho uns breves momentos de descontracção. Bem precisamos!

segunda-feira, 10 de maio de 2010

ARES DA SERRA


O CANTINHO DO SEVERA: parte 3



por

ANTÓNIO AUGUSTO FERNANDES



O tio Ramos, descoroçoado com o rumo que os acontecimentos tomavam, foi consultar o vizinho, o Sr. Rogério, que os da minha criação já não conheceram, marido da Sr.ª Aninhas, que era polícia em Bragança. Este, já com longo traquejo em lidar com as manhas dos serranos, matutou, matutou…

− Deixa lá, Ramos! Amanhã vamos para Bragança, tu, eu, mais os cabos de ordens. A coisa há-de se aclarar.

No dia seguinte, o detido foi chamado por um guarda a depor novamente diante do Regedor e dos cabos de ordens. Com a maior desfaçatez jurava e trejurava que era inocente… e que lhe tinham arrancado a confissão à força… por ter medo do tio Ramos… e porque os de Rebordainhos tinham má vontade contra os dos Pereiros… e porque torna e porque deixa, não havia maneira de repor a confissão já feita. Quando a cena já se prolongava mais que o razoável e o homem afrouxava já na convicção com que lançava as suas juras, a porta da sala abriu-se de repelão e uma sombra de rosto velado, revestida com uma andaina velha de cotio que fora do Severa, avançou lentamente, soltando os gemidos surdos do estertor da morte. O Tato cambaleou, apavorado com a aparição da alma penada do sogro que assim voltava do outro mundo para lhe atormentar os dias. Entrou de tremer e, de olhos esbugalhados a esbagoarem-se em lágrimas, de novo confessou o crime da sua ganância. Fora bem traçado o plano do Rogério.

As gentes das serras, embora rudes, são de seu natural cordatas, mas, de longe a longe, ocorre um destes crimes violentos, quase sempre motivados por uma das suas três grandes paixões do serrano: a fome de terra, a fome de água para dessedentar essa mesma terra ou a paixão por uma mulher, um desses amores tresloucados que roubam a luz do entendimento a um homem. E por isso, quando sucediam, tais crimes cavavam rodeiras fundas na memória colectiva da Serra e passavam à tradição oral através de versos toscos que os cegos compunham e depois entoavam, acompanhados ao violão, de terra em terra, pelas feiras e festas das redondezas, mendigando o seu tostão ou malga de caldo. A toada ia entrando no ouvido de toda a gente e, não raro, ouvia-se a sua melopeia dolente lançada aos ares limpos da serra por algum lavrador agarrado à rabiça do arado, ao ritmo lento do passo dos bois, enquanto as lavandiscas catavam os vermes na leiva fresca.

E também do crime da morte do Severa, cujo nome se perpetuou na toponímia do Cantinho que abrigava os nossos lazeres de crianças, algum poeta anónimo lavrou crónica em versos que o amigo Amândio Evaristo teve a gentileza de me fazer chegar, juntamente com outras informações obtidas junto do Sr. Manuel Martins, aposentado da G. N. R., seu tio e filho do tio Ramos Regedor. Literariamente tais versos podem não ser grande coisa, mas constituem o testemunho de uma literatura popular, velha como Portugal, herdeira dos jograis medievos e conservada à margem dos saberes académicos; antes, crescida à sombra da vadiação livre dos aedos por aldeias e vilares, e afeiçoada ao ouvido popular pela toada da redondilha maior. Por isso, aqui os devolvemos à gente de Rebordainhos para que o tempo os não leve definitivamente consigo e como memorial ao Cantinho do Severa.


..............No concelho de Bragança
..............Deu-se tragédia sangrenta
..............Ao ouvir esta história
..............Muita gente se atormenta.

..............Um genro desnaturado
..............Fez grande crueldade:
..............Matou o sogro à machadada
..............Por vender uma propriedade.

..............O sogro vendeu o prédio
..............Do qual o genro gostava
..............E por ele o ter vendido
..............Matou-o à machadada.

..............O sogro faltou de casa
..............E o povo desconfiava.
..............Procuraram o velhote
..............Sem poder ser encontrado.

..............Quando p'ra uns lados do terreno
..............O iam a procurar,
..............O genro o transportava
..............Dali p'ra outro lugar.

..............Assim se passaram dias
..............Sem seu sogro aparecer,
..............Até que se descobriu
..............Isso se veio a saber.

..............Fora um homenzinho
..............Buscar um carro de lenha
..............E levara um cãozinho
..............Que descobriu a façanha.

..............Apareceu o tal cãozinho
..............Com o focinho ensanguentado
..............E o dito homenzinho
..............Seguiu logo para aquele lado.

..............Qual não foi o seu espanto
..............Ao encontrar o velhinho
..............Com a cabeça cortada
..............E o corpo em desalinho.

..............Foram dar a parte ao povo,
..............À gente da freguesia:
..............Tudo correu para o local
..............Em enorme gritaria.

..............Prenderam então o genro
..............Com alguma desconfiança
..............Sendo logo transportado
..............Para a cadeia de Bragança.

..............Depois de estar na prisão
..............Ele a verdade contou:
..............Foi por vender o prédio
..............Que a cabeça lhe cortou.

..............Devemos reparar bem
..............Neste homem de avareza,
..............Pois fez tão grande crime
..............Só por causa da riqueza!


Nota: escolhi como ilustração Os Sete Pecados Mortais, pintura de Ieronymus Bosch

quinta-feira, 6 de maio de 2010

ARES DA SERRA


O CANTINHO DO SEVERA: parte 2



por

ANTÓNIO AUGUSTO FERNANDES



Ao que consta, que eu já não o conheci, bom sujeito, caladão e muito metido consigo mesmo, o Severa não era de grandes folias, mas era estimado pelos vizinhos. Morrera-lhe a mulher, morrera-lhe também a filha que tinha casado lá para os Pereiros, por isso vivia sozinho. A maior parte do tempo passava-o para os lados do Atalho, onde tinha umas territas aninhadas naquele córrego que chamam de Atalho porque era por ali que os dos Pereiros atalhavam direito à Quinta do Sepúlveda quando iam para Rossas ou a caminho da feira dos Chãos, sem terem de passar pela Vila.

Talhada no meio de touças e soutos, longe de tudo, quase no extremo do termo e no seio do silêncio que apazigua a alma, onde só se aventuravam os pastores mais dedicados ou algum caçador, mas abrigadinha do vento galego, com uma poceca de água de nascente, a fazendinha era a menina dos seus olhos. Ali se davam todos os mimos precisos para o governo de uma casa. Dali comiam o coelho, o melro, o texugo e ainda sobrava para o dono que ali passava o melhor dos seus dias.

Ora um dia, de repente, o Severa deixou de aparecer. Como vivia sozinho, a princípio ninguém deu pelo caso. Não aparecia pela taberna, nunca mais foi visto ao cimo das escadas a merendar o seu cibo de pão com queijo ou presunto.

Ao segundo dia, os vizinhos chamaram à porta, não fosse por lá ter dado alguma coisa ao homem. Era escusado, que a porta estava fechada por fora com o caravelho, que naqueles tempos sadios podia-se confiar nos vizinhos como em família chegada. Entraram. Lá dentro, ninguém. Tudo em ordem como se o homem tivesse acabado de sair a algum recado. Comunicaram para os Pereiros, para casa do Tato, o genro, viúvo também, e nada: − que o não via há um ror de tempo.

A primeira ideia foi ir procurá-lo para os lados do Atalho não lhe tivesse por lá dado coisa ruim. E lá avançou um grupo encabeçado pelo Tato, que entretanto chegara dos Pereiros. Na horta nenhum vestígio nem do Severa nem de luta ou tão pouco de pegada fresca: as couves e os feijões vicejavam indiferentes a dramas e apenas um pouco murchos porque a água começava a faltar-lhes. Voltaram para trás e iniciaram uma busca mais minuciosa. A partir das poulas de Penacan, entraram pelo souto dos Pereiros, embrenham-se pelo mato sombrio do Cabeço Cercado, desceram para os lados do Cano, até que a noite os obrigou a suspender a investigação. Voltaram no dia seguinte em grupo mais numeroso, sempre encabeçado pelo Tato que começava já a lamuriar-se: − Ai meu rico sogro, que era tão meu amigo!

Resolveram ir vasculhar mais minuciosamente o Souto dos Pereiros, onde o carvalhal era mais denso e mais difícil de devassar, mas o Tato insistia que não valia a pena voltar ao já vistoriado, e voltava ao lamento: − Ai meu rico sogro, que era tão meu amigo! E ia-os empurrando para os matagais de Vale-das-Vinhas.

O grupo estranhou a insistência perturbada do homem e entrou de ficar sorumbático, ainda por cima perseguido pela toadilha lamurienta do Tato: − Ai meu rico sogro, que era tão meu amigo!

− Ó homem, cala-te, c’os diabos, que até dás azar!

E começavam a ficar encanzinados com a ladainha, tanto mais que toda a gente sabia que eles andavam de candeias às avessas, quase nem se falavam, desde que o Severa começara a falar pelas tabernas em vender uma das melhores terras: o corpo já lhe pedia descanso… e tinha o que comer até ao fim dos seus dias. Ao Tato, que vivia na esperança de herdar, na qualidade de genro embora viúvo, não agradaram tais falações. E deixaram de se falar. Não se falavam, era lá com eles, cada um tem o feitio que tem e toca a sua vida para diante como muito bem entende e pode. − Agora vir com a cantilena de serem amigos, porra, bole com os nervos da gente!... − alvitrava um mais inconformado.

O outro acusou o toque:
− Lá por mal nos falarmos não quer dizer que não me amofine. E ele que era tão meu amigo!… E às vezes até me dava uma chouriça para levar de merenda…

Este pormenor da chouriça deixava-os intrigados. A que propósito, num momento de tanta aflição… Ouve-se cada uma!...

As buscas continuaram ainda, cada vez mais desalentadas e acabaram por findar sem qualquer resultado.

Mas logo no dia seguinte, andava o Zé Tiago a fazer lenha numa touça que tinha para aqueles lados, quando o rafeirozito que o acompanhava por todo o lado lhe aparece a saltaricar em volta como quem traz recado. Não tardou a reparar que o bicho desinquieto tinha o focinho emporcalhado de viscosidades negras. Sentiu um aperto no estômago. Dar-se-ia o caso?...

− Busca, busca, Farrusco … − e o cachorro desandou por onde tinha vindo, seguido do dono.

Adentraram-se cão e dono pelo Souto dos Pereiros e não tardou muito, o animal parou a ladrar para um vulto informe mal encoberto por umas giestas. O intenso fedor a mortulho que alastrava em volta dizia o resto.

Àquele tempo, era regedor da terra o tio Ramos, o ferreiro da terra. Homem espadaúdo e de voz tonitruante, mas bom homem no fundo, tinha a sua forja na rua da Portela, ali a dois passos da Fonte Grande, e à porta, para temperar os aços, enorme pia de pedra cavada num monólito de granito. Grandes momentos pasmei à porta a contemplar o sopro hercúleo do fole enorme que levantava fagulhas até ao tecto ou a ver dobrar à força de marra as grossas fitas de ferro incandescente que depois eram aplicadas nas vastas rodas dos carros de bois, largando em densas baforadas o cheiro bom do freixo queimado.

Ora o tio Ramos, tendo ficado com a pulga atrás da orelha desde as cenas enfuscadas das buscas, não hesitou na decisão a tomar, quando o Zé Tiago lhe veio com a novidade. No dia seguinte, logo à pormanhã, correu a casa do Moreno e nomeou-o, mais um vizinho, cabos de ordens, como então era de uso e direito. Arrancaram os três para os Pereiros. Foram dar com o Tato a regar umas couves ao pé de casa e logo ali, sem mais aquelas, lhe deu voz de prisão.

O homem, apanhado de surpresa, começou a tartamudear sem que dissesse coisa com coisa, até que, amarelo que nem cidra, desatou em choro convulso e acabou por confessar a feia acção: sabia que o sogro, naquele dia, andava para o Atalho e fora ter com ele apenas para terem uma conversa de homem para homem, ainda sem qualquer intenção maldosa. Só quando o apanhou desprevenido a beber debruçado sobre a nascentinha da horta é que uma coisa má lhe passou pela ideia e, levado pela paixão que o recozia por causa da venda das terras, desferiu-lhe à queima-roupa uma machadada no pescoço.

O Regedor e os seus homens entreolhavam-se estupefactos: − E então as buscas?... E ele continuou: que escondera o cadáver à pressa, no meio do mato, à espera de uma ocasião propícia para o fazer desaparecer. Entretanto, todas as noites se dava ao trabalho de o carregar às costas para os sítios onde já se tinham realizado as buscas, para assim despistar quem o procurava. Pensava mesmo que essa noite seria o momento azado para o devolver à terra, antes que lobos e corvos dessem conta do cadáver.

Por essa altura de tempos apertados, os transportes eram mais escassos e lerdos que nos tempos que correm, mas a justiça mais lépida. Como a essa hora já o misto tinha passado há muito tempo em Rossas, o tio Ramos não esteve com meias medidas: entregou uma caçadeira a cada um dos cabos de ordens e despachou-os de imediato para Bragança. − Que iam da parte do Ramos de Rebordainhos e o entregassem à Guarda. As armas não tinham licença, mas na esquadra ninguém lhes haveria de perguntar por ninharias atendendo ao caso e a quem os mandava ir! A butes, como então não era raro fazer-se, tomaram o caminho da Tergaça, Eiras fora, passaram em deslado de Viduedo e foram apanhar a estrada de Bragança junto ao Remisquedo, em vez de irem por Rossas, que sempre se poupava uma data quilómetros.

− Mas então não é, que chegados à esquadra − contava mais tarde o Moreno − o alma do diabo começou por negar tudo o que tinha confessado ao Regedor, nos Pereiros!

Como em Rebordainhos não havia telefone, nem luz, nem estrada − um cu de Judas! − deixaram o homem entregue à Guarda e, antes que anoitecesse, atiraram-se de novo ao caminho a contar ao tio Ramos as juras de inocência do Tato quando se viu diante do oficial de serviço.

(continua)

domingo, 2 de maio de 2010

ARES DA SERRA


O CANTINHO DO SEVERA: parte 1


por

ANTÓNIO AUGUSTO FERNANDES




Vocês lembram-se do Cantinho do Severa?

Não, já ninguém se lembra, porque os que o habitaram na infância fizeram-se à vida pelas variadas veredas do vasto mundo. E o cantinho desapareceu há muito para dar lugar à casa onde moram o tio Zé Luís e a Tia Assunção. Era ali o Cantinho do Severa. Mesmo no ângulo formado pelo palheiro antigo e a escada, havia um pedaço de rocha sobre o qual assentava a parede e onde nos sentávamos à vez. Encostado ao muro da cortinha do tio Zé Foguete, elevava-se a escada de blocos de granito esconso até ao patamar donde se subia para a horta e se entrava para o palheiro do tio Amadeu. Aí fora em tempos a casa do Severa que deixou o seu nome ligado ao cantinho. E era o Cantinho do Severa, protagonista de uma longa e trágica história.

Aquele cantinho era domínio privativo da criançada do bairro da Portela. Era pequeno, a findar em inho, mas era nosso, o pequeno paraíso perdido das nossas brincadeiras de crianças.

Nas manhãs agrestes de geada forte, ou quando os nevões começavam a derreter, o sol, que andava baixo e mal despegava da linha do horizonte que corre de Miranda para o Mogadouro, esse sol, amigo dos pobres, batia naquele recanto abençoado de manhã à noitinha. E a ganapada disputava-o aos pardais, que também são bichos friorentos e iam para ali em cata dos grãos de centeio tombados dos cuanhos que o tio Amadeu guardava no palheiro.

O muro que sustinha as terras do tio Zé Foguete, mais todo aquele espinhaço de monte que dali grimpava até ao Castelo, como então se chamava (e creio que ainda se chama) ao talefe da Fraga Grande da Ladeira, abrigavam o Cantinho do vento da Sanábria, o vento papa-feijões, que corta como navalhas, greta os lábios e deixa os renovos triscados como tabaco. Nessas manhãs de cieiro, não havia em Rebordainhos canto abençoado como aquele para sentir na pele a carícia do sol friorento de Inverno que pouco aquenta, mas acalenta como mão de mãe.

Como ficava sobranceiro à via ápia que vinha de Rossas e seguia para trás da serra, prestava-se também para paiol magnífico das nossas munições e excelente barbacã nas denodadas guerras travadas à lapada entre o Bairro de Cima e o Bairro de Baixo. E era também um miradouro de primeira ordem, donde se avistava até ao fundo do Prado, que é como quem diz, o Rossio da aldeia. Pela manhã era dali que lobrigávamos os professores, a Senhora D. Maria emparelhando com o mano, o Sr. Francisquinho Ribom. Mal despontavam, em seu caminhar compassado e fidalgo, no ângulo do Prado, junto à casa do tio António Piloto, corríamos a casa, a talhar um carolo de centeio de viático para a meia manhã, apanhar a sacola com a lousa e o livro de leitura e ala que se faz tarde até ao patim da Casa da Aula onde os dos Pereiros já tinham acendido a braseira para desengaranhar os dedos antes do ditado.

Era igualmente a nossa sala de estudo. Para ali vínhamos, à tardinha, soletrar o bê-à-bá fugiu a burra e lutar energicamente com as contas de dividir e multiplicar sobre a lousa negra de ardósia.

No Verão, esse muro da cortinha do tio Zé Foguete desentranhava-se em azedas, arroz e copilos, a matéria-prima para brincar às casinhas: sobre os degraus e patamar que levavam ao palheiro do tio Amadeu, feitos cozinha e sala de jantar. Aí nos banqueteávamos com faustosos jantarinhos de arroz, azedas e bolinhos de terra amassada servidos nos copilos. E, para sobremesa, as silvas do talude desentranhavam-se em amoras gordas e sumarentas como cerejas. E quando era sazão, assaltávamos as ginjeiras do tio Foguete que generosamente se debruçavam sobre a vereda.

Por tudo isso nós estimávamos o Cantinho do Severa como o nosso paraíso privativo e nossa segunda casa.

Mas o Cantinho do Severa guardava um segredo terrível que deixara um sulco fundo na memória colectiva da aldeia, lembrado pela porta da loja voltada para a serra de Bornes, toda cravejava de chumbos. Era uma escumilha miúda como se a porta tivesse sido atacada das bexigas loucas. No momento morno do entardecer, já cansados das correrias, dos jogos da roça e da bilharda no pátio da Escola, íamos com a ponta da navalha desenterrar esses chumbos que guardávamos nos bolsos como testemunhos remotos e misteriosos que nos falavam de uma história velha e sombria de crime e castigo.

Nenhum de nós sabia a origem de tais chumbos, mas para a nossa imaginação eles eram o sinal remanescente desse caso de terror e morte a que andava associado o nome do Severa.

(continua)