quinta-feira, 28 de maio de 2009

ROSTOS

III

Hoje volto ao acervo da Senhor Dona Maria. Provavelmente vai acontecer o mesmo que com a primeira fotografia que publiquei e com as muitas outras que há para mostrar. Apesar disso, creio que devo mostrá-las, pela sua origem, e também pelos espaços das nossas memórias. Apresento três de enfiada.

O nosso estimado Anónimo faz uma leitura interessantíssima delas. Passo a transcrever:

Acredito que se trata mormente de fotos de visitas dos professores, ou seja, gente de fora. Aliás, creio que o Filinto apontou um critério importante de análise: homem ou garoto que, antes do fim da década de 50, calce sapatos finos (ou "sapatos baixos", como também se dizia) em vez dos simples "sapatos" do sr Carlos (a que hoje todos chamam botas), não é, certamente, de Rebordainhos - e este princípio valia também para os manos Ribom.
(Carregar nas imagens para ampliar)

A primeira é, para mim, uma novidade absoluta porque nunca imaginei que o largo do Pelourinho tivesse servido, alguma vez, de lugar de medeiros. Será que o tanque está tapado pelo medeiro ou não estaria, ainda, construído? Aparentemente está uma data na fotografia. 1935 é a opção da maioria.

Identificações feitas pela tia Maria Seca

5 - P.e Teodoro
7 - Tia Maria da Graça Costa
8 - Sr. D. Graça
9 - Sr. Professor
11 - Sr. D. Maria
12 - Tia Adriana
13 - Tia Joana (mãe da tia Adriana Padeira?)
14 - Germana (...)

A segunda foto - que o António sugeriu tratar-se de inauguração da escola - parece-me muito interessante. Para explicar faço notar três pormenores (além de um quarto, que deixa ver a roda de um carro de bois entre as pessoas 5 e 6): a) há pedregulhos a esmo, junto ao tanque da bica, a sugerir altura de obras de pedreiro -interessante por isso, parecendo apontar para a altura da construção do tanque da roupa; b)o grupo recebe a luz do sol do seu lado esquerdo (excepto os manos Ribom, que a recebem de frente); c) a face visível da "torre" das bicas não tem saída de água e, por isso, só pode tratar-se da face nascente ou da poente (as que tinham bica eram as viradas a norte e a sul).

Os dois últimos pormenores, conjugados, mostram que a foto foi tomada de sudoeste. Repare-se bem naquele perfil vegetal à direita ...um CHORÃO! É!, isso mesmo: o segundo motivo porque acho esta foto interessante é porque regista aquilo que eu pensei não restar registado senão na memória de alguns - já bem poucos, provavelmente: o belo chorão que havia junto à forje, bem perto de onde as pessoas se habituraram a ver o "malhão" que acolhia o "vinte" no jogo do fito, nas tardes de Domingo.

Pena que a foto (aliás "queimada" na parte central superior) tenha sido tirada de baixo para cima, com a objectiva num plano inferior ao do nível superior do tanque e a apontar ao céu... Só isso terá impedido de mostrar a casa da tia Ricardina e, talvez, a da tia Becissema. Porque os arbustos à esquerda... são do sr. Ernesto!Termino com uma pergunta sugerida pela hipótese do António: será que não seria possível informar-se junto de alguém dos mais velhos do tio Seco sabendo se, acaso, eles não reconhecem nos dois velhotes (pessoas 3 e 2) a tia Marquesa e o marido - quero dizer, os pais da tia Maria Seca? É que, nesse caso, tratava-se de uma fotografia de honra, com os doadores do terreno da escola

1 - Sr. Professor
2 -
3 -
4 -
5 - Primo dos senhores professores
6 - Sr. D. Maria
7 - Sr. Carlos
8 - prima dos srs. professores

A terceira é presente para os menos novos do que eu: a escola em que eu não estudei mas que frequentaram quase todos os que nos visitam.

1 - Sr. Professor
2 - Tio Manuel Rodrigo (faleceu no Brasil)
3 - Tia Elisa (esposa do anterior)
4 - Tia Emília do Outeiro
5 - Tia Maria dos Santos
6 - Sr. D. Graça
7 - Sr. D. Maria

domingo, 24 de maio de 2009

A TIA ETELVINA


Ela cumpria com rigores de fiel alguns ensinamentos dos romances que, de quando em vez, chegavam às mãos das mulheres de Rebordaínhos. Não que se encafuasse em casa e só visse o mundo por detrás dos caixilhos das janelas, posto que a vida a tal não asava, antes, porque o seu ser donairoso se moldava pouco ao resguardo de quatro paredes. Gostava de ser admirada e sabia que marcava a diferença com a sua pele de uma alvura imaculada que o sol não tinha permissão de tocar. Senhora de si, enfrentava os dias e o trabalho com a sombrinha aberta numa mão e o cabo da enxada na outra. A sombrinha e também o lenço da cabeça, mas a esse deixava-o tombar sobre a nuca mostrando a cabeleira farta enrolada em crucho descaído e as arrecadas de ouro que, pendentes das orelhas, lhe emolduravam o rosto. Nem quando a torreira de Agosto frigia a carne ela descalçava as meias "para que as pernas me não fiquem pretas", justificava-se entre risos, reconhecendo que a vaidade era o motivo.

Era uma figura e tanto, a tia Etelvina! Nem teria metro e meio de altura, mas que importava isso, se a mulher se quer como a sardinha e a natureza fora pródiga nos atributos que lhe concedera? Nunca se vira menear de ancas como aquele nem colo onde as sete voltas do cordão de ouro assentassem tão plenamente. Jamais saía à rua sem as maçãs do rosto resplandecentes de pó-de-arroz e, aos domingos, avivava os lábios de carmim. A ganapada, que ainda mal aprendera a vergonha, perguntava-lhe só para se poder rir da resposta que já esperava:

- Ó tia Telbina, a senhora porque é que pinta a cara
?

- Ora andor! Metei-vos lá na vossa vida
!

Nos domingos de estio vestia-se de seda, um fatinho florido e fresco de saia e casaco que se ouvia roçagar. Calçava as meias de vidro e os sapatos finos de ir à cidade e, à hora da missa, dobrava em quatro o tapete vermelho sobre o qual se ajoelharia para que as frinchas das tábuas ou alguma areia escapada da varredura da véspera lhe não ferissem os joelhos. A garotada, que de tudo faz motivo de brincadeira, se a apanhava distraída, surripiava-lhe o genuflexório para se poder rir à socapa enquanto ela se desunhava a saber dele, inquirindo as mulheres à sua volta. Impávido, o Sr. padre João continuava a celebrar a missa, mas à roda da tia Telbina era tudo risos sufocados.

Todo o lixo a enojava, brio superlativo numa terra de gente habituada a conviver com lama e fumo, a meter a mão no estrume seco para o espalhar na terra e a cofiar o pelo de vacas e de porcos. Enquanto caminhava pelas ruas no seu andar de balancé, com os botins pretos de borracha de ir à rega, arremessava para os cantos qualquer porcaria que lhe atrapalhasse o passo. "Que gente tão porca!", resmungava. Certo dia, passando em frente à casa da Maria Fecisma, sentiu os pés enrolados num farrapo e lá veio a exclamação inevitável enquanto atirava o benairo sobre o sequeiro encostado à casa. Prosseguiu o caminho, foi regar as batatas, mas à volta sentiu a falta da combinação que mulher nenhuma se esquecia de vestir. Procurou-a por todo o lado e, não a encontrando, veio-lhe à ideia que antes de ir à rega estivera em casa do João Fouce. “Ó João, eu não deixei aí a minha combinação?” perguntou, inocente, do fundo das escadas. O Fouce, que normalmente era brincalhão, naquela altura gostou pouco da pergunta e retrucou indignado: “O diabo da mulher é maluca, ou faz-se?!” Foi então que a tia Telbina se lembrou do benairo que arrojara sobre o sequeiro da Fecisma. Foi lá ver e encontrou a sua combinação a que se tinham escochado as alças e lhe deslizara corpo abaixo sem ela dar por isso, a não ser quando, já no fundo das pernas, lhe atrapalhou o passo.

São muitas as histórias da tia Etelvina associadas aos seus requisitos higiénicos. Gostando de luzir no corpo, tinha as mesmas exigências no que ao seu Casimiro e à casa dizia respeito. Não era no brilho argênteo dos potes energicamente esfregados com areia que se distinguia das outras mulheres de Rebordaínhos, porque os potes luzidios eram o orgulho de todas elas, prova maior do seu asseio e demonstração segura das suas virtudes domésticas. Não. O que distinguia a tia Etelvina era a atenção aos pormenores, às coisas a que mais ninguém dava importância. “Ai que me esqueci de esfregar as tenazes! Ó garotos, esperai aí por mim!” pediu à quantidade de gente que, empoleirada no atrelado do tractor do Manuel Nelzeira, se preparava para ir a um funeral a Vale de Nogueira. Estava dado o mote para a risota do caminho, espécie de esconjuro do motivo triste da viagem.

Levava a vida sossegada. Sem filhos, afeiçoou-se a sobrinhos e vizinhos, não dando mostras de que a falta de descendência lhe inquietasse os dias ou desse noites mal dormidas. Garantia a juventude recorrendo às novidades que os contactos com Bragança permitiam chegar à serra, por isso, mal a queda dos dentes lhe começou a fazer encovar o rosto, tratou de pôr dentadura que lhe permitisse um sorriso imaculado. Nem à hora da morte se esqueceu dela, pedindo às mulheres que a rodeavam que lha pusessem. Deus nosso Senhor, afeito às coisas belas, gostaria de ver um rosto perfeito à Sua frente. E a ela, a Santa, nomeada que herdara do pai, por motivos acrescidos, o Todo Poderoso haveria de exigir perfeição.

O que mais a zangava era que lhe perguntassem a idade. A tia Ascensão Gralha, regressada havia pouco de África e esquecida de tais pruridos, um dia em que sossegavam nas escadas da Teresa e do João Fouce, atreveu-se a fazer-lhe a pergunta fatal. “Quantos anos tem, já, a senhora, tia Telbina? “Quarenta e cinco!” foi a réplica que ouviu, a mesma que escutavam todos quantos a queriam ver arreliada e se divertiam com a resposta. “Tem quarenta e cinco, tem! A senhora é mais velha do que o nosso assador!” sentenciou o Zé Garrano do tio António Piloto, garoto desbocado e de saídas hilariantes para quem, naquela tenra idade, o assador de castanhas cheio de buracos devia ser mais que centenário.

Como qualquer mortal amante do que tem e desconfiado daquilo que está para vir, a tia Etelvina amou e quis a vida até ao último instante. No leito de morte, ainda teve fôlego para uma tirada da mais profunda filosofia e, na sua voz nasalada, sentenciou para as mulheres que tentavam sossegá-la com as promessas de vida eterna:

Vós bem falais, mas eu morro e vós ficais!

sábado, 16 de maio de 2009

ROSTOS

II

Bem, já que ninguém se interessou pela minha conta, deixo aqui nova fotografia, desta feita, enviada pela Dadinha (a Eduarda, filha do Cinquenta) a quem agradeço a resposta pronta ao meu apelo. Haja mais como ela!

Desta vez deixo tudo ao cuidado dos comentadores: de que eira se trata? Quem são as pessoas? No final, existindo algum consenso, acrescentarei os elementos possíveis.

(Carregar na fotografia para ampliar)

Creio que já existem algumas certezas. Vamos lá:

1 - Lídia (filha do tio Moreno)

2 - António (Cinquenta)

3 - Maria do Céu (Marquinhas)

4 - Fernando (filho do tio Júlio Jarrete)

5 - tio Francisco Alves (Sortes)

6 - Domicílio (do tio Grilo)

Em discussão:

7 - Manuel Ferreira? (Não pode ser este, por cotejo das idades com o Fernando Jarrete, segundo o nosso anónimo) Tio Arnaldo? Tio António Honorato (filho da tia Vermelha)?

8 - Armindo da Eira? Santacombinha? Frederico?

Sem alvitres:

9 -

10 -

Eira:

Cabecinha? Portela? Tia Aninhas ?

quarta-feira, 13 de maio de 2009

PESSOAL, A FÁTIMA FAZ HOJE ANOS

Pois é, ela está caladinha! Mas eu digo aos quatro ventos que a nossa Fátima faz hoje anos.
Ela que me perdoe (e desculpem-me vocês também), porque estou a colocar este post em cima da conta que hoje nos contou.
MAS ELA MERECE, NÃO ACHAM?

E vejam só como era, como é!

PARABÉNS MANA

Augusta Mata







Conta

Prometi e aqui fica para nos fazer rir um bocadinho.


II - O ENFORCADO


Cansados de uma manhã inteira a escavar batatas na Teixeira, João Fouce e a filha Amélia, mais conhecida por "Ruça" ou "Chocha", subiam o carreirão da Covinha. O ritmo calmo dos passos embalava-lhes a conversa que devia ir animada porque a Chocha tem sempre duas larachas para dizer e o João Fouce gostava de a espevitar para se rir com as maluqueiras da filha. A certa altura estacaram, pasmados. Do ramo de uma nogueira tombava e balançava o corpo de um homem.

- Ó fulano! O que é que fazes aí dependurado pelas patas? Perguntou, incrédulo, o João Fouce.
- Estou-me a enforcar!
- Ai tu queres-te enforcar pelos pés em vez de ser pela cabeça?
- Ora! Pela cabeça firo-me! Rematou o outro que encerrou a conversa e nos deu o mote para mais uma conta.
___
Foi a melhor imagem que encontrei . Foi roubada daqui e um bocadinho aldrabada também.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

ARES DA SERRA


X - PAIXÃO SERRANA
por

António Augusto Fernandes

O carro vermelho e de cromados reluzentes estacou mesmo em frente do grupo que palestrava no Prado, junto à taberna. Abriu-se a porta: do interior emergiram cheias de glamour umas pernas altas encabadas em sapatinhos de verniz e salto alto; depois desenharam-se as coxas roliças moldadas pela minissaia escarlate e as ancas pródigas de deusa da fertilidade. Finalmente, os seios, fartos, empinados na blusa rubra como papoila. Um todo incandescente de pétala vermelha que se desprende de farfalhuda rosa vermelha.

O pessoal, que gozava a tarde de domingo no Prado em frente das tascas da aldeia, suspendeu a pedra do fito, o lançamento da relha, o gesto de levar o copo aos beiços e quedou-se, de olho guloso e boca entreaberta, a mirar os movimentos coleantes da Vénus, imprevista em tal sítio e a tais horas.

Por instantes a mancha vermelha do automóvel faiscou mais ainda, como um desejo sob o sol escaldante de Agosto, recortado contra a cal branca da casa do Pe João. Depois, abriu-se a porta do condutor, também numa lentidão de celebração litúrgica, e um sujeito baixote, em fato verde-rã, engravatado, pena de catatua ondeando no chapeuzinho xadrez de aba curta, atirou-se para fora com arreganho, desenhando um meio sorriso entre o desdenhoso e o triunfal por debaixo do bigodinho catita − tirinha escura bordejando o lábio superior. Um momento de pasmo suspenso… e murmúrios incrédulos correram entre os espectadores:

Ele não é o Tobias dos Vales!?...
− Quem haveria de dizer! …
− Homessa! Olhem-me p’ra isto! O que não fazem estas Franças!...
O ranhosito que poucos anos antes largara para a aventura de França, saído de trás das urgueiras dos Vales, lapoiço de todo …
− Ora vejam só!
E ela, então, tinha que ser a Miquelina, está bom de ver!
O que não fazem os ares da estranja! Rica febra!
E eram de facto o Tobias mais a Miquelina.

***
Aqueles amores tinham dado que falar por toda aquela corda de povos e haviam mesmo passado à crónica montesina como a versão serrana de Romeu e Julieta.

Os Vales eram (ainda são) uma quintarola de meia dúzia de casinhotos entalados numa prega da serra, lá para cima, a dois passos da capela da Senhora da Serra que punha aquela mancha branca no ponto mais alto da serra da Nogueira, onde, nos começos de Setembro, arrecadadas as colheitas, se pagavam as promessas de quinze aldeolas em redor, numa procissão em que campeava o andor da Senhora todo revestido de cravos brancos e de notas de banco.

As gentes do sítio viviam de uns quantos alqueires de centeio que os coelhos deixavam vingar por aqueles crueiros calvos e de alguma batatita que medrava nos conchos mais lentos onde borbulhasse nascente que lhes acudisse nas sedes do Verão. Mas a faina maior fora a da pastorícia, enquanto não chegaram os engenheiros do Estado e lhes coutaram os baldios da vasta serra livre para o plantio de pinheiros e bétulas. Atidos ao saber do provérbio que reza que “o trabalho do menino é pouco mas quem o despreza é louco”, era a ganapada quem de ordinário se ocupava de acompanhar os gados pelo espinhaço da serra.

Crescidos em tal solidão, as crianças eram ariscas como musaranhos, esgueiravam-se como trasgos para trás dos sequeiros da lenha ou para as lojas da bicheza doméstica sempre que lobrigavam estranho, que aquilo era um cu-de-judas onde só se ia parar por engano. E assim, isolados do mundo, eles enrijavam ao sol e às intempéries, no comestio do pão centeio e da batata, e os que a malina não mondava nos primeiros anos de vida medravam que nem cabaços em terra de horta, pequenitos no tamanho, que o sustento não era de luxo, mas caldeados em aço.

A serra e as estações, as cabras e as canhonas eram a grande escola da vida que ministrava as primeiras lições sobre a magna tarefa de se desenrascar e os mistérios da propagação da espécie. Como os zagais eram atrevidotes e as pastoritas não alinhavam a sua conduta pelo platonismo das éclogas de Bernardim, nem ocupavam os seus ócios a declamar ao desfastio as endechas de João de Lemos à lua de Portugal, seria quase milagre da Senhora da Serra que alguma levasse impoluto ao altar o ramo de laranjeira.

Nessa lei cósmica que a natureza ditava, que os montes proclamavam e os bichinhos ensinavam, crescera também a Miquelina, de tal modo que aos dezasseis anos era já uma mulherzinha nas suas graças feminis, muito sabida nos mistérios da vida e aprazida nas celebrações de Afrodite. Mas também arrojada como Hércules para conduzir a cabrada aos pastos dos píncaros e a brandir o cajado com que açulava os cães do gado, de pescoço cilhado por coleiras de enormes puas, quando por lá ecoava o uivo do lobo. Não se atormentava com fantasmas nem almas do outro mundo e, nos dias curtos de Inverno, era já noite cerrada quando, enroscada num daqueles tremendos cobertores de lã saídos do tear da Isménia, tocava o rebanho a caminho do curral. Nas noites do luar vivo de Janeiro, os chocalhos do gado tinindo no ar fino da geada, o balir desaforado dos cordeirinhos em demanda do úbere farto das ovelhas e os berros estridentes dos cabritinhos tenros momentaneamente perdidos da mãe ensaiavam uma perturbante sinfonia rusticana evolando-se sobre o cheiro acre das folharascas de carvalheira e da palha centeia a curtir nas quelhas para estrumar as belgas na Primavera.
***
Foi por essa altura, quando as noites são longas como as léguas da Póvoa e povoadas de solidão, que o Tobias, muito morfanho e casmurro, deu em rentar a porta da Miquelina, com grandes vagares e olhinhos de carneiro mal morto. De mãos enterradas nas pantalonas, raspando com a bota de couro cru as lajes do caminho, assobiando com sentimento uma modinha de amor, passava e repassava… E nada.

Fora bater a boa porta! Ela queria lá saber de amorios! Bem lhe bondavam os trabalhos da sua cabrada e a gandaia pela serra com os outros pegureiros. Mas, como água mole em pedra dura… ela lá condescendeu em lhe aceitar o namoro que ele lhe propusera com uns versos canhestros, oscilando entre o lírico e o erótico, passados como legado literário de geração em geração desde o tempo da Maria Castanha e comummente aceites como formalização do acto. Mais para se ver livre do emplastro do que por convicção.

O rapaz andava que nem que tivesse o rei na barriga, muito ufano da sua conquista, que a moça era de arreguilar o olho. Já nem as jornadas a picar roço pelas arribas da serra lhe rendiam como dantes e começara até a fumar Três-vintes para se dar mais ares de homem, quando, pela noitinha, demandava a caleja da Miquelina para dois dedos de prosa.

Mas, tal como à linda Inês, também esta felicidade a fortuna não deixou durar muito. No céu azul da paixão do Tobias começaram a acastelar-se as nuvens aziagas do ciúme. Por meias palavras mal apanhadas no ar, aqui e acolá e uns sorrisinhos marotos surpreendidos dos mariolas da sua criação, ia-se-lhe figurando no juízo tardo que, pelos dias compridos lá pela serra, a sua conversada não desdenhava de outros amores de ocasião. Uma coisa má entrou de lhe roer os por-dentros e vinham-lhe ganas de esganar a malvada e depois atirar-se a um poço.

E foi neste entrementes que, num dia de começos da Primavera, quando pelos soutos soava já a cantiga alvissareira do cuco, pela meia tarde, se ouviram para os lados do Fetal, uns gritos aflitivos de aqui-d’el-rei, ai Jesus! Acudam! Uns trabalhadores, que por ali surribavam uma barreira do Arraul, acorreram, guiados pelo estridor da gritaria. Nem queriam acreditar: com uma corda atada ao pescoço, o Tobias não cessava de esbarregar como vitelo desmamado, as veias do pescoço encordoadas, não do enforcanço, mas da convicção que punha na gritaria. O alma de cântaro não era tão lorpa como o faziam e tivera artes de escolher uma carvalha ainda tenra que dobrasse com o seu peso de forma a permitir-lhe berrar com os pés bem assentes no chão. Está visto que encenara aquilo para impressionar a ovelha tresmalhada da Miquelina e chamá-la de novo ao seu redil. Lá o soltaram da corda e o Tobias, entre combalido e heróico, deixou-se amparar até à aldeia, cogitando com íntimo regozijo que a calhondra não deixaria de se comover perante tão subido gesto de desespero. Mas quando, ao descer da serra com cabrada, lhe contaram o sucedido, a moçoila saiu-se com um obsceníssimo manguito de total insensibilidade perante tão acendrado martírio de amor. O Tobias anunciava para quem o queria ouvir que aquilo ainda acabava mal, que ainda se matava. − Haviam de ver!... E, de facto, de novo agarrou numa corda, de novo escolheu uma carvalheira nova e de novo foi salvo por quem lhe acudiu aos berros.

A bem-amada começava a achar graça àquilo e ria a bandeiras despregadas dos dislates do seu Romeu, continuando na sua libérrima vida de pastora sem peias de qualquer feitio. E o Tobias, que já ganhara gosto a tal encenação, voltou a ameaçar e voltou a agarrar num bocado de corda.

E foi um sardinheiro, que subia das bandas da Ribeira com seu burrico na esperança de vender o meio caixote de sardinhas que lhe sobejara na freguesia, quem acudiu aos berros desesperados do namorado incorrespondido. Foi dar com o Tobias, as cordoveias do pescoço muito inchadas e a língua já roxa a saltar-lhe da boca. Desta vez o mofino avaliara mal a resistência da carvalha escolhida e faltava-lhe um palmo para que os pés tocassem o chão.

Está bom de ver: o amor derruba montanhas e tamanha persistência tinha mesmo que dar em casório. E ali os tinham gordos e felizes, gozando a felicidade de embasbacar o povo com o seu carro rubro de cromados reluzentes.

− Carai! Guardado está o bocado!... − comentava o nosso conhecido Aidinhas com os seus lumes de filósofo.
− Pois é! − rematava outro, de olho lânguido − casamento e mortalha no céu se talha.

domingo, 3 de maio de 2009

Mãe



Correio

Carta de minha Mãe.
Quando já nenhum Proust sabe mais enredos,
A sua letra vem
A tremer-lhe nos dedos.

- «Filho»...
E o que a seguir se lê
É de uma pureza e de um tal brilho,
Que até da minha escuridão se vê.


Miguel Torga


Parece, então, que há mais poesia na caixa de comentários:

Obrigado Senhor!
Obrigado, Senhor, pela mãe que me deste
...... por todas as Mães do mundo
...... pelas mães brancas , de pele alvinha
...... pelas pardas , morenas ou bem pretinhas
...... pelas ricas e pelas pobrezinhas
...... pelas mães - tias , pelas mães -avós , pelas madrastas -mães ,
...... pelas professoras - mães
...... pela mãe que embala ao colo o filho que não é seu
...... pela saudade querida da mãe que já partiu
...... pelo amor latente em todas as mulheres , que desperta ao sentir desabrochar em si uma nova vida
...... pelo amor , maravilhoso amor que une mães e filhos
......Eu te agradeço , Senhor !

Olímpia