quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

DAR

por
ANTÓNIO AUGUSTO FERNANDES


Naquele tempo, no tempo em que o destino deu connosco em Rebordainhos, a tia Lídia, que tinha a quarta classe (das primeiras alunas que o Sr. Professor Francisco Ribom levou a exame em Rebordainhos) fazia de enfermeira porque … sabia dar injecções. Como ainda não tinha chegado o tempo do desperdício e das seringas descartáveis, a mecânica da injecção tinha o seu quê de complicado. A seringa (de vidro) e a agulha (porque tanto uma como a outra tinham que durar muito tempo) eram ambas transportadas numa caixinha inox com um pequeno cavalete metálico. Na altura do seu uso, voltava-se a tampa do avesso e servia de reservatório onde se deitava um pouco de álcool e se colocava o cavalete. Sobre este punha-se o resto da caixa com a seringa e a agulha mergulhadas em água. Incendiava-se o álcool que ardia até a água ferver e assim se esterilizava o material.

Ora um dia, pelos começos do Verão, aparece lá em casa um homenzinho cabisbaixo, torcendo nas mãos nervosas o chapéu velho, muito apoquentado: ─ “Se a Sr.ª Lídia lhe podia fazer um grande favor, que a mulher estava muito malzinho… O Doutor tinha-lhe receitado meia dúzia de injecções… mas quem lhas havia de dar?!”

A minha mãe, coitada, que era (quase) uma santa, lá lhe disse que sim, pois o que é que lhe havia de dizer?. Só que o homem era dos Vales, e de Rebordainhos aos Vales ainda é um estirão de respeito pelos velhos caminhos traçados para os carros de bois. No dia seguinte, lá nos metemos a caminho. E digo ‘nos metemos’, porque, como já não havia aulas, eu fora destacado para acompanhante na empresa sanitária. Até à Ribeira a coisa ainda ia: era caminho sobejamente conhecido, pois que para ali ficavam os lameiros para onde arranchava com os meus primos do Outeiro atrás das vacas, e era um regalo para os olhos aquele manto verde dos lameiros pelo vale acima por onde coleava o renque de freixos acompanhando a ribeira que nascia logo ali acima, no Pórto. Depois é que era o dianho: o calor começava a apertar e aquela subida, rasgada em diagonal nos costados áridos do Ladeirão , nunca mais acabava. Para quem não sabe ou não se lembra, os Vales eram um cu de Judas de meia dúzia de casotas encravadas numa prega a caminho dos cumes da serra, por onde não se ia para lado nenhum. O carreiro e o mundo acabavam ali.

Lá chegados, aquilo era um silêncio de cemitério. Quer dizer, não era bem, porque dois ou três miúdos brincavam espolhinhados no chão, no meio das galinhas que esgaravatavam a leiva, mas uns e outras num silêncio de convento cartuxo. Minha mãe chamou-os para que lhe indicassem a casa da tia Maria doente. Levantaram o nariz do chão e, mais selvagens que botocudos e mais lestos que perdigotos, evaporam-se em segundos, em absoluto mimetismo com a terra e os ramos dos sequeiros em torno.

Lá teve a enfermeira que gritar o nome da enferma até que, de um janelo rasgado na pedra nua, surdiu a cabeça desgrenhada da própria: ─ Estou aqui, Sr.ª Lídia!
Esperei sentado ao fundo da escaleira, esmagado por tanta quietude e tamanha solidão, olhando os montes ermos e quedos, a fraga grande da Ladeira ao longe, de sentinela à aldeia e adivinhando os três pares de olhos assombrados a espreitarem entre os ramos do sequeiro. Rebordainhos não era propriamente a capital, mas ao pé daquilo, bem fazia de metrópole.

As viagens ainda se prolongaram por uma semana, mas como a tia Maria dos Santos disponibilizou a sua burrica como meio de transporte para a enfermeira, fiquei dispensado da tarefa de acompanhante; por isso essa primeira impressão que tive dos Vales foi também a última e tão funda me ficou que me definiu a convicção de que não estava mesmo talhado para cenobita.

Passaram-se umas semanas e, um dia, quando me entretinha naquela varanda dos tempos da minha avó Adriana, uma mulherzinha pálida e magra, com o lenço pela cabeça sombreando-lhe ainda mais as olheiras fundas, subiu as escadas com uma cesta de vime enfiada no braço. Minha mãe acudiu da cozinha.

─ Ó Senhora Lídia, eu vinha-lhe agradecer a trabalheira que teve comigo. ─ E, isto dizendo, ia destapando a cesta e de dentro sacou pelas orelhas um coelho taludo, bem mais gordo que a dona, coitada.
─ Ó rapariga, guarda lá isso. Olha, leva-o e trata de ti, a ver se ganhas forças, que tu inda andas bem fraquinha.

A moça baixou os olhos embaraçada, acerejaram-se-lhe as faces pálidas, tremeu-lhe o beiço e futurei que se ia pôr a chorar:

─ Eu bem sei que é pouco… mas eu não tenho paga para o que fez por mim. E num arranco suspirado: ─ Ai! Era um favor quer me fazia se… ─ e desatou num choro manso com as lágrimas borbulhando, grandes e mudas.
E minha mãe, já a pontos de chorar também:
─ Está bem, Maria, está bem. Pronto. Deixa lá ver o bicho.

Bem, talvez não fossem santas as pessoas da nossa terra na nossa infância, mas tiravam bem as medidas ao sentido do serviço e da gratidão.

7 comentários:

Fátima Pereira Stocker disse...

Tonho

Tirei e conservei para mim a magnífica chave com que encerras o texto que nos ofereces:
"talvez não fossem santas as pessoas da nossa terra na nossa infância, mas tiravam bem as medidas ao sentido do serviço e da gratidão."

Tirar as medidas ao sentido do serviço e da gratidão: eis o que é preciso ressaltar da boa herança que recebemos dos nossos pais. Bem-hajas por nos lembrares disso através desta história exemplar que contaste da tua mãe.

Um grande beijo

Anónimo disse...

PORQUÊ?

Este relato amargo e doce, trouxe-me à memória episódios de vida passados, longe de Rebordainhos, e o poema musical e comovente de Augusto Gil que todos conhecem: “Batem leve, levemente, como quem chama por mim.... Mas as crianças, Senhor, porque lhes dais tanta dor?!…Porque padecem assim?!…”
O contexto poético de Augusto Gil era a província da Beira Alta, mas como vós dizeis: ...de março a abril!...

Quando e onde é que os nossos egrégios avós erraram para que Portugal, depois do relativamente breve período em que correu atrás da pimenta da Índia e “deu novos mundos ao mundo”, tenha caído “nesta apagada e vil tristeza”, em que a maioria da população vive pobre e envergonhada.
É certo que paralelamente à epopeia dos Descobrimentos Portugueses travava-se na Europa uma luta de morte entre os reformadores da Igreja de Roma, que traziam consigo novas formas de pensar, e os contra-reformadores, que estavam contra as novas formas de pensar os mundos físicos e metafísicos. Ora, Portugal escolheu o lado da Contra-Reforma, onde também estava o seu poderoso vizinho, a Grande Espanha, campeã da unidade europeia, sob o manto protetor da Igreja de Roma.
Depois tivemos a tragédia de Alcácer-Quibir, perdemos a independência e, em 28 de maio de 1588, foi do magnífico estuário do Tejo que zarpou a Armada Invencível, rumo à conquista das Ilhas Britânicas – a derrota marítima de Espanha, foi simultaneamente a derrota de Portugal.
Porém o mundo não para e, no século XVIII, o Marquês de Pombal suspeita que o desenvolvimento agrícola, comercial e industrial do reino seria mais rápido se expulsasse a Companhia de Jesus, a “tropa intelectual” de elite da Contra- Reforma.
Os jesuítas foram expulsos, mas o salto em frente prometido por Pombal foi praticamente um salto de pardal, como são os dias a seguir ao Natal!
Já no século XX, o grande estadista Oliveira Salazar volta a apostar na Santa Madre Igreja Romana, consegue segurar durante pouco mais de uma década as ricas províncias ultramarinas de Angola e Moçambique, mas a pobreza envergonhada continua nas aldeias e cidades, e o seu Estado Novo acaba por colapsar entre o gáudio dos inimigos de Portugal e o retorno de milhares de refugiados involuntários que, no entanto, serão muito bem recebidos pelos bons pobres da metrópole. Nessa época, dizia-se que Portugal estava na cauda da Europa. Era no tempo da Revolução dos Cravos, quando os soldados revolucionários ensinavam ao povo que Portugal não era um país pobre e o povo acreditava que Portugal era um país rico!
Já no século XXI, assumiu o leme da barca lusitana o exímio doutor de direito José Manuel Durão Barroso que, dotado de uma mente brilhante, ao ver-se de tanga no meio de uma tempestade, abandonou o barco antes dos ratos e das ratazanas, para a seguir ser levado em ombros pelos seus colegas ingleses, franceses e alemães até ao pedestal de Presidente da Comissão Europeia, do alto do qual governou sabiamente a Europa Unida durante alguns anos, ao fim dos quais se verificou que o pobre Portugal estava mais pobre.
Já lancei algumas pistas, mas a pergunta inicial persiste:

PORQUÊ!

Anónimo disse...

OLá Tonho

Pelos vistos a tia Lídia era mais humana que a Dra Aurora em Bragança.
Esta senhora tinha um "consultório" num RC da Rua Abílio Beça, local onde o meu Pai, sem dar tempo ao tempo nem utilizar a técnica do baraço, me levou para a extração de um dente. A dita doutora depois de me sentar sem meiguices numa cadeira, agarra num alicate, aplica-o à dentola e... aqui vai disto, torce a arranca-o sem dó nem piedade.

Era para garantir que um dia me lembraria dela. E conseguiu.

Um grande abraço

Orlando Martins

Filinto disse...

Primacho António:
A tua mãe era uma santa, não só a dar as "picas", mas na forma como tratava as pessoas. Às vezes penso para comigo: "A tia Lídia teve uma morte santa e bem mereceu por tudo o que fez."
Lembro-me da caixa onde fervia a seringa e agulha como o tio Manuel frade também fazia.
Ficaste cansado do passeio aos Vales? O que dirá a nossa colega de escola, a filha do Raul que percorreu aquele calvário durante quatro anos para fazer o dito exame da quarta classe? Outros tempos.
O teu texto é um retrato perfeito da tua querida mãe.
Obrigado
Filinto

Elvira Carvalho disse...

Relatos de vida de outros tempos, onde as pessoas se interessavam pelos outros e estavam sempre prontas a ajudar quem precisava. Sentimentos que se perderam no tempo.
Texto muito bem escrito. Me recordou João de Araújo Correia. Os meus parabéns.
Um abraço e bom Domingo

Rebordas disse...

Eu também fui um dos enfermos a levar umas cinco picadas, devidamente aplicadas pela tia Lídia. Lembro bem que a primeira foi uma tortura tanto para mim como pra ela. Na hora de meter a agulha, retesei o músculo e haja paciência da parte dela para me explicar que teria que relaxar, caso contrário a agulha poderia partir-se o que complicaria tudo. Demorou bastante, mas conseguimos chegar a bom termo. Ela era realmente uma santa.
abraço
César

A. Fernandes disse...

FÁTIMA

Obrigado pela edição do textinho sobre uma das nossas mães, neste caso, a minha mãe, e ainda pela magnífica vista sobre os Vales, que, salvo aquela manchinha de cal, ainda hoje fala de isolamento e solidão.
Tonho

ORLANDO E FILINTO:
Seus escritores de férias! Para mim vós sois a “jam nova progenies” de que falava o Camilo a propósito do aparecimento de Júlio Dinis. Cá vos espero para reconstruirmos a crónica da velha Rebordainhos. Abraços
Tonho

ELVIRA e REBORDAS
Mais uma vez obrigado pelas vossas palavras carinhosas. César, não sabia que tinhas sido uma das vítimas das artes clínicas da minha mãe. hum abraço
António

Senhor ANÓNIMO:
Você até sabe umas coisas e não escreve nada mal e eu até tenho andado com pachorra para ler as suas prelecções. Mas há na sua escrita três coisas aborrecidotas:
1. Acabe de vez com essa história do anonimato e olhe para nós de frente, olhos nos olhos, à boa maneira transmontana.
2. Os seus “comentários” nada têm de comentário porque nada têm a ver nem com a matéria em questão nem com Rebordainhos. São antes excursos mais ou menos aleatórios sobre o que bem entende, com algumas obsessões de que nós não temos culpa.
3. E depois… esse seu tom doutoral, vagamente errático entre Estado Novo e Comité Central, com que se apresenta a catequizar os gentios… francamente não cabe aqui.
A. Fernandes